
A crescente digitalização das relações contratuais trouxe novos desafios à comprovação da autenticidade dos negócios jurídicos celebrados online. É inegável que elementos técnicos como endereço IP, geolocalização e hash se tornaram instrumentos relevantes para reconstruir a trilha digital de uma contratação. Porém, alguns litigantes vêm defendendo a ideia de que a ausência desses registros deveria levar automaticamente à nulidade do contrato eletrônico. Trata-se de uma expectativa que, embora pareça reforçar a segurança jurídica, acaba por flertar com um formalismo incompatível com o próprio modelo normativo brasileiro.
É preciso reconhecer: o ordenamento civil não condiciona a validade de um contrato à existência de metadados tecnológicos. O Código Civil mantém critérios clássicos — capacidade, objeto e forma — e a forma eletrônica é plenamente admitida quando não houver exigência legal específica. Exigir que toda contratação digital dependa de IP, geolocalização ou hash para ser válida equivaleria a criar, pela via judicial, um requisito novo, que o legislador não instituiu. O Marco Civil da Internet, frequentemente invocado nessas discussões, não transforma logs em
elemento constitutivo de negócios jurídicos; sua função é regulatória e probatória, não formal.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reforça exatamente essa distinção: a controvérsia sobre autenticidade não invalida de plano o contrato — ela apenas desloca o ônus da prova. Cabe à parte que se beneficia do instrumento digital demonstrar que a manifestação de vontade ocorreu de forma legítima e identificável. E essa demonstração pode se dar por meio de vários caminhos: registros de aceite, trilhas de auditoria, tokens, biometria, confirmações por SMS,
e, quando existentes, os já citados IPs e hashes. Não há hierarquia absoluta entre esses meios, tampouco exclusividade tecnológica.
Nos tribunais estaduais, observa-se a mesma tendência. Embora muitos magistrados considerem a presença de registros técnicos um fator de robustez, poucos se aventuram a declarar um contrato nulo simplesmente pela ausência
desses dados. Em geral, o que se reconhece é a fragilidade probatória, não a inexistência do negócio. Quando há dúvida real sobre autoria, abre-se espaço para perícia técnica, reconstrução de logs e avaliação do conjunto probatório. Essa é a abordagem equilibrada que respeita tanto a vulnerabilidade do consumidor quanto a boa-fé objetiva exigida nas relações de consumo e contratuais.
A exigência automática de IP, geolocalização ou hash como condição de validade produziria um efeito colateral preocupante: excluiria do mercado milhões de contratações legítimas realizadas por plataformas simples, pequenos empreendedores ou ferramentas que não possuem infraestrutura de coleta avançada de metadados. Criar-se-ia um ambiente em que apenas grandes corporações teriam condições de cumprir um padrão probatório tão rígido —
prejudicando, paradoxalmente, a própria democratização das relações digitais.
Do ponto de vista prático, o que se espera não é a imposição de um rito formal tecnológico, mas sim a maturidade probatória. Quem afirma a existência de uma contratação eletrônica deve apresentar o máximo de elementos possíveis, mas a ausência de um deles não pode implicar nulidade automática. Em casos de impugnação, o poder judiciário deve avaliar o conjunto da prova, e não apenas a presença ou ausência de um tipo específico de registro.
Assim, a discussão sobre IP, geolocalização e hash não é sobre validade, e sim sobre suficiência probatória. Transformar tais elementos em requisitos formais equivaleria a ignorar a flexibilidade que a legislação brasileira confere à manifestação de vontade no ambiente digital. Em vez disso, o caminho mais seguro e coerente continua sendo o que a jurisprudência já indica: exigir prova adequada, e não prova padronizada.
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