
A discussão que chegou recentemente à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.913.986) sobre o prazo para desistência da compra de passagens aéreas pela internet revela mais do que um embate jurídico: tratase de um teste de coerência para o sistema de proteção ao consumidor no país. No centro da controvérsia está a possibilidade de aplicar o “direito de arrependimento” previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC), quegarante ao comprador sete dias para desistir de uma contratação feita fora do estabelecimento comercial — exatamente o caso das vendas online.
O voto do relator, ministro Marco Buzzi, favorável à aplicação do prazo do CDC, merece ser visto como uma reafirmação da lógica protetiva que sempre orientou o direito do consumidor no Brasil. As companhias aéreas, ao recorrer ao STJ, sustentam que a regra não deveria se aplicar ao transporte aéreo e que a Resolução 400/2016 da Anac — que prevê prazo de apenas 24 horas — deveria prevalecer. O argumento, no entanto, desconsidera um
ponto essencial: normas administrativas não possuem força para limitar direitos assegurados por lei federal. Se o CDC estabelece sete dias, não cabe a uma resolução reduzi-los.
Mais do que um tecnicismo jurídico, a discussão envolve o reconhecimento de que o consumidor, no ambiente digital, está de fato mais vulnerável. A compra de passagens online, muitas vezes impulsionada por promoções relâmpago, timers regressivos e mecanismos de pressão comercial, não oferece ao usuário o mesmo espaço de reflexão que uma contratação presencial. A própria lógica da internet favorece decisões rápidas, nem sempre plenamente informadas. Neste cenário, negar o direito de arrependimento seria reforçar um desequilíbrio já existente na relação entre empresas do setor aéreo — detentoras de grande poder econômico — e consumidores que buscam apenas exercer seu direito básico à informação e à segurança jurídica.
O voto de Buzzi também acerta ao relembrar que o CDC foi concebido para proteger o lado mais fraco da relação de consumo. Se a lei garante sete dias, é porque reconhece que a compra fora do estabelecimento físico exige uma
tutela diferenciada. Ao mesmo tempo, a flexibilização proposta para compras feitas a menos de sete dias do voo, permitindo a retenção de até 5% do valor — conforme o Código Civil — demonstra equilíbrio: protege o consumidor sem ignorar os efeitos operacionais inerentes ao setor aéreo.
É claro que as empresas têm seus próprios desafios, como o gerenciamento de assentos e a volatilidade da demanda. Porém, tais dificuldades não podem se sobrepor a direitos fundamentais previstos em lei. A tentativa de utilizar uma resolução administrativa como escudo para limitar direitos do CDC, além de juridicamente frágil, revela uma resistência histórica do setor em aceitar práticas mais transparentes e equilibradas. No fim, o que se discute não é apenas o prazo de arrependimento, mas o modelo de relação que o país deseja promover entre consumidores e empresas. A decisão final do STJ — ainda pendente após pedido de vista — terá impacto direto sobre milhões de brasileiros que dependem do transporte aéreo, especialmente em um cenário no qual a compra online se tornou regra e não exceção.
A proteção ao consumidor não deve ser vista como obstáculo ao mercado, mas como condição para sua credibilidade. Se o STJ confirmar o entendimento do relator, estará não só respeitando a hierarquia das normas, mas também reafirmando que, em um ambiente digital cada vez mais agressivo, é dever do Estado garantir que o consumidor não fique à mercê de práticas desleais. É isso que se espera de um sistema jurídico comprometido com a justiça e com a dignidade nas relações de consumo.

Igor Labre - Advogado e Consultor Jurídico. Mestre - UFT. Pós graduado em Direito Constitucional. Tributário. Penal e Processo Penal. Docência. Professor Universitário.
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