
Depois de anos de debates, idas e vindas e muita ansiedade por parte do mercado, o Banco Central finalmente entregou o conjunto de regras que irá moldar o ecossistema de ativos virtuais no Brasil. Com a publicação das Resoluções 519, 520 e 521/2025, o país entra em uma nova fase: a das criptomoedas sob supervisão direta do regulador financeiro mais relevante do país.
É inegável que, para um setor historicamente marcado por assimetrias de informação, promessas exageradas e vulnerabilidades gritantes em prevenção a ilícitos, a chegada de um marco regulatório robusto é bem-vinda. Mas a pergunta central é outra: a busca por segurança não acabou passando do ponto?
As normas só entram plenamente em vigor em 2026, e as empresas terão um período razoável para se adaptarem. Ainda assim, o tom do conjunto regulatório revela um BC disposto a assumir o protagonismo — muitas vezes indo além do que o mercado imaginava.
As consultas públicas foram realizadas, foram debatidas, mas a versão final tem claras marcas de endurecimento.
A exigência de autorização prévia para qualquer empresa que opere com intermediação, custódia ou negociação de criptoativos não surpreende; o que surpreende é o patamar de exigência que acompanha essa autorização.
O ponto de maior impacto talvez seja o patrimônio mínimo exigido para as futuras PSAVs. Os valores — de dezenas de milhões de reais — destoam da realidade brasileira e também da comparação internacional. A União Europeia, mesmo com todo o rigor da MiCA, exige valores muito inferiores. Esse descompasso revela uma mensagem: o BC encara o setor de criptoativos como mais arriscado que o sistema de pagamentos ou o das primeiras fintechs. Diante de episódios recentes de fraudes, isso não é totalmente injustificado. Mas também não deixa de ser uma escolha que reduz drasticamente o espaço para pequenos operadores, abrindo caminho para bancos e grandes instituições ocuparem praticamente sozinhos o terreno.O risco é claro: em nome da proteção, o regulador pode acabar sufocando justamente o ambiente de inovação que as criptomoedas impulsionaram no mundo inteiro.
Se há um ponto em que não deveria haver controvérsia, é a separação obrigatória entre o dinheiro da empresa e os ativos dos clientes. Essa medida deveria ter chegado antes — e teria evitado parte dos prejuízos gerados por colapsos de plataformas brasileiras. Aqui, o BC acerta. Segregação patrimonial é a base mínima para que investidores confiem em qualquer intermediário, seja no mercado tradicional ou no digital. A inclusão de regras reforçadas de governança, cibersegurança e monitoramento de transações também fortalece o ecossistema, aproximando o Brasil de padrões que organismos internacionais defendem há anos.
Ao trazer operações com stablecoins para dentro do guarda-chuva cambial, o BC dá um passo ousado. Isso abre caminho para maior controle — mas também para a possível cobrança de IOF, o que, em um país já conhecido pela carga tributária elevada, pode desestimular o uso dessas moedas digitais.
Por outro lado, a retirada da ideia de proibir autocustódia mostra alguma sensibilidade. O problema é que a obrigação de identificar os titulares das carteiras externas praticamente encerra as transferências verdadeiramente privadas. É um golpe duro na privacidade, valor tido como quase sagrado pela comunidade cripto. Mais uma vez, o BC coloca segurança e compliance acima da filosofia original da tecnologia.
Com exigências tão altas, dificilmente veremos um setor pulverizado como antes. O movimento natural será a concentração: grandes empresas absorvem pequenas, players estrangeiros recuam e surgem modelos de terceirização de infraestrutura — algo como um “PSAV as a Service”. Em teoria, isso pode trazer profissionalização. Na prática, também reduziu o espaço competitivo, aumentando a dependência de poucos atores capazes de cumprir todas as regras.
A grande virtude das normas é óbvia: segurança jurídica. Fundos institucionais, que sempre mantiveram um pé atrás diante do vazio regulatório, agora têm motivos para atuar. Isso pode trazer maturidade e liquidez ao mercado. Mas há um custo. O Brasil escolheu uma regulação dura, claramente mais dura que a de países que querem atrair negócios de tokenização, stablecoins e inovação descentralizada. Não é impossível que essaregulamentação, mesmo bem-intencionada, torne o país menos atraente para empresas globais e acabe afastando empreendedores nacionais.
O BC entregou uma regulação sofisticada e detalhista, condizente com a tradição brasileira de tratar riscos financeiros com seriedade. Porém, ao reforçar capital mínimo e controles rígidos, parece ter escolhido um caminho que privilegia a estabilidade institucional — às vezes em detrimento da competitividade e da inovação que caracterizam o universo cripto.
A dúvida que fica é simples e profunda: teremos um mercado mais maduro ou um mercado menos livre?A resposta só virá quando o setor estiver operando sob as novas regras. Até lá, resta torcer para que o zelo do regulador não transforme o ecossistema brasileiro de ativos virtuais em um espaço seguro — porém pouco fértil.

Advogado e Consultor Jurídico. Mestre - UFT. Pós graduado em Direito Constitucional. Tributário. Penal e Processo Penal. Docência. Professor Universitário.
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