
Há momentos em que o debate público brasileiro parece girar em círculos, reproduzindo velhos dogmas com a convicção de quem descobre verdades inéditas. Um desses dogmas é a crença — ainda forte em certos ambientes acadêmicos e ideológicos — de que o endurecimento penal não tem qualquer efeito sobre a criminalidade. A realidade insiste em dizer o contrário. E quando um ministro experiente do Superior Tribunal de Justiça sustenta, com clareza, que penas mais duras compõem parte essencial da solução para enfrentar o crime organizado, vale prestar atenção.
Não se trata de defender fórmulas mágicas. O próprio ministro é enfático: pena mais severa, sozinha, não resolve. Mas, sem ela, tudo o mais tende a fracassar. Num país em que facções disputam território com o Estado e determinam quem entra, quem sai, quem vive e quem morre em amplas regiões urbanas, imaginar que suavizar punições irá produzir paz social é, no mínimo, um erro de diagnóstico.
A discussão recente sobre o endurecimento penal voltou à tona após a operação policial no Rio de Janeiro que deixou mais de uma centena de mortos. Diante do episódio, o governo apresentou ao Congresso o chamado PL Antifacção, com o objetivo de modernizar o combate ao crime organizado. É curioso: enquanto setores políticos suavizam o texto, alegando proteger direitos, o diagnóstico técnico é outro — o projeto original buscava preencher lacunas de inteligência, isolamento de lideranças e aperfeiçoamento de investigações.
Mais grave que divergências legislativas é o ponto de fundo: a democracia, lembra o ministro, exige que o Estado seja o único detentor da força. Em partes do Rio, isso já não é verdade há muito tempo. Ali, o poder público só entra escoltado, se entra. Táxi não chega, ambulância não entra, luz e internet passam pelo crivo das facções. Quando o crime assume
funções de governo, já não se fala mais de segurança pública, mas de soberania.
É impossível discutir penas sem discutir execução penal. A Lei de Execução Penal, celebrada como marco civilizatório, se tornou peça de ficção jurídica: idealista no texto, inútil na prática. Progredir de regime virou quase um ato administrativo automático, porque o Estado não fiscaliza, não acompanha, não individualiza penas. A ressocialização, que deveria ser norte, transforma-se em retórica vazia. Dentro dos presídios, quem dita as regras são as facções, que recrutam, disciplinam e coagem.
Ou seja: um sistema frouxo, ineficiente e incapaz de acompanhar o preso não só falha em ressocializar — ele alimenta o próprio crime organizado. E a sociedade, por sua vez, enxerga impunidade, porque muitas vezes é isso mesmo que acontece.
A fragilidade investigativa no Brasil é um desastre anunciado. Crimes que deveriam gerar prisão preventiva não geram; reincidentes contumazes continuam soltos por tecnicalidades; furtos altamente organizados recebem o mesmo tratamento de delitos eventuais. E, ao mesmo tempo, sistemas de dados não conversam entre si, o que leva ao absurdo de criminosos serem soltos por falhas cadastrais ou inocentes serem detidos porque a polícia nãoatualizou um registro.
Como imaginar um combate eficaz ao crime se o país não domina o básico: investigar, cruzar dados, saber quem é quem?
Entre os caminhos apontados para fortalecer o sistema, há quatro pilares que deveriam ser consenso: investigação robusta, execução penal realista, revisão das competências federativas e aperfeiçoamento contínuo das leis contra o crime organizado. Nada disso é simples. Nada traz resultados imediatos. Mas ignorar essas frentes é optar deliberadamente pela paralisia.
Há quem aposte na descriminalização das drogas como solução mágica, imaginando que secaria o financiamento das facções. Não há
evidência internacional robusta que confirme isso. Na prática, o crime diversifica mercados: energia elétrica, serviços clandestinos, armas, extorsão. Onde há território dominado, há lucro. A droga é só uma fatia do bolo.
O Brasil insiste em discutir segurança pública como se lidasse com problemas isolados. Mas o que se vive em muitos estados é uma disputa de soberania. Nenhum país civilizado tolera fronteiras internas controladas por grupos armados. Menos ainda tolera presídios comandados por facções, legislações descoladas da realidade e uma máquina estatal incapaz de investigar e punir com eficiência.
Penas mais duras, por si só, não são panaceia. Mas penas frouxas,combinadas a um Estado fraco, são convite aberto ao avanço do crime. O debate sério exige quebrar tabus: reconhecer que a criminalidade organizada no Brasil é uma estrutura de poder e que enfrentá-la demanda rigor, inteligência, investimento e coragem política.
Enquanto o país não admitir essa obviedade, continuará enxugando gelo — e cedendo, pedaço por pedaço, o território que deveria pertencerapenas à lei.
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